segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Poesia - Procura-se (2007)





















Procuro uma espécie nova,
e tenho que pô-la à prova
pra ver o quanto me serve.
Não basta só me servir.
Tem que ter um ir e vir
entre um mundo e outro,
ter jogo de cintura,
ter bom senso, ter candura,
circular por novas zonas,
sem ter medo de errar.
Procuro um ser humano
tão humano, tão humano,
que tenha instinto animal.
Que nunca seja um macho
nem mesmo uma feminista.
Que seja aura, alma, calma,
que seja vida e amor.
Procuro uma espécie nova,
e não sei onde achar.
Por certo não há de ser
na mesa de qualquer bar.
Também não creio que exista
onde alcance a minha vista.
Nas ruas por onde ando,
nos prédios em que circulo,
no trânsito em que enlouqueço...
Não. Não sei de ninguém assim.
Queria alguém que amasse
e que amasse amar.
Que sempre se entregasse
e sempre viesse buscar.
Uma espécie tão nova
que luzisse, transparente.
Que transasse com a alma
nunca acreditasse
no que acredita essa gente.
Que não pisasse, planasse,
e que tocasse, tocasse, tocasse...
Procuro essa espécie, louca,
mas não sei onde achar.
Quem sabe, talvez, fluindo,
e me deixando levar,
me tornasse mais etérea,
conseguisse flutuar.
Quem sabe me elevando
e aprendendo a minha parte,
eu conseguisse, com arte,
Deixá-la me encontrar...


Analú

domingo, 26 de dezembro de 2010

Felicidade Obrigatória

Antes de ontem foi véspera de Natal, ontem foi Natal, e hoje é um dia depois do Natal.
Semana que vem será o final do ano. E depois, o primeiro de ano. E, depois, o segundo dia do ano. E assim sucessivamente.
Há mais de um mês que se observa mudança significativa na vida da cidade. Excesso de trânsito, correria. Uma certa dificuldade pra se trabalhar, e uma resistência das pessoas em resolverem coisas importantes, porque , afinal, estava chegando o Natal.
Na última semana, era difícil ir ao mercado, ao shopping, à esquina. Estabelece-se uma onda de consumo desenfreado, e às vezes, olhando em volta, tem-se a impressão de que o mundo vai acabar.
Vivemos em ciclos. Há ciclos internos, nosso organismo se reciclando, nossa vida pedindo mudanças, nosso emocional querendo novidades, nosso afetivo desejando um novo amor...
E há os ciclos externos, determinados por datas específicas, por marcações de tempo, por cumprimento de jornadas.
Os ciclos, parece-me, nos ajudam a viver. A vida é uma coisa que segue, segue, segue, e, se fracionamos o tempo, às vezes temos a impressão de que isso ajuda. Até porque determinamos pausas, entre um fragmento de tempo e outro, para descanso. Férias.
Todos os anos fico muito impressionada com a alteração no comportamento das pessoas por conta do Natal e do final do ano. E, pra não ser estraga-prazeres, raramente explicito o que penso. Mas penso que se vivêssemos de forma mais consciente e se respeitássemos um pouco mais nossos ciclos internos seríamos mais felizes, o prazer estaria presente de forma mais intensa no nosso dia-a-dia e essas paradas forçadas não seriam tão absurdamente necessárias.
Vejo que para curtir férias de dez ou quinze dias, muita gente entra numa paranóia um mês antes e se estressa mais do que se estressaria se não tivesse férias. E muitas vezes me parece, observando alguém que sonha com um paraíso distante, que a busca, na verdade, é por algo que falta dentro de si mesmo. O paraíso vai distrair um pouco o buraco interno, mas ele não deixará de existir, estará lá quando a rotina voltar ao normal.
Em nome de comemorar o nascimento de Jesus, muita gente se mata, gasta mais do que pode, se desgasta e termina o ano cansada e no vermelho. E, na loucura das compras e dos preparativos, as pessoas acabam esquecendo-se do aniversariante, e do que ele ensinou, que foi o amor, a aceitação do outro como é, e a simplicidade.
Nos últimos dias cruzei com pessoas que não estavam felizes. E que, por não estarem felizes numa época em que a felicidade é obrigatória, estavam mais infelizes ainda.
Afinal, dá pra se marcar dia pra ser feliz?
E dá pra se marcar dia pra pedir ao coração que perdoe todo o descaso que se sofreu durante o ano, e que se abra pra receber com abraços aqueles que não nos abraçaram quando precisávamos disso desesperadamente?
Dá pra se pedir a um coração machucado que cicatrize artificialmente pra que possamos sentar à mesa com quem nos magoou, em ceias regadas a hipocrisia?
Sentimentos não se impõem. Por mais que tentemos entender racionalmente as razões de alguém, o coração tem seu tempo, e ele não aceita suborno.
Os ciclos impostos muitas vezes brigam ferrenhamente com os ciclos internos.
E, infelizmente, muitas vezes as pessoas não entendem que desrespeitar nosso tempo interno em nome dos chamamentos externos pode nos fazer adoecer.
O espírito de Natal, a que muitos recorrem pra insistir em reaproximações precoces, confraternizações superficiais, forçações de barra, se existe, deveria existir durante os 365 dias do ano. Que começássemos em primeiro de janeiro a prestar atenção nos que nos rodeiam, a ter compaixão pelo próximo, a estar mais atentos às necessidades de carinho que o outro tem. Que nos abrir a escutar e tentar entender o ponto-de-vista alheio fosse uma constante, para que estivéssemos próximos de verdade e quando as festas chegassem, sentar à mesa e brindar fosse simplesmente consequência de um relacionamento consistente e verdadeiro.
Seria bonito se conseguíssemos presentear nossos parentes e amigos todos os dias, com nossa presença, nosso carinho, nossa atenção. Nos importando de fato com eles, e fazendo-os perceber que não estão sozinhos.
Aí, sim, chegando o Natal, a confraternização, o sentar-se à mesa para comer juntos e a troca de presentes materiais seriam uma forma de comemorarmos o que existiu de fato, durante todo o ano: o amor.

Analú

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A Bendita da Chavinha

Olá! :)


Quem tem me lido, já percebeu que o Barba Azul vai ser um assunto recorrente. Isso tem um motivo, não é porque sou chata. O Barba Azul é chato.
E, como precisamos lidar com ele o tempo todo, há que se esmiuçar essa figura, que vive nos passando as mais desleais rasteiras e boicotando o nosso crescimento.
Como somos treinados, desde que nascemos, a fazer vistas grossas quando percebemos que é ele agindo, dentro ou fora de nós, precisamos nos treinar para começar a enxergá-lo. E falar sobre ele é uma forma de compreendê-lo, saber como age e, quem sabe, escapar de suas investidas.
A história é rica e cheia de detalhes e estratégias, que, aos poucos, podemos entender e aplicar em nossas vidas.
Quando posto ou falo sobre ele, sempre há comentários que me levam a pensar a respeito do enorme poder desse monstro, agigantado pelos mais diversos motivos, entre eles essa insistência da sociedade em nos querer cegos e manipuláveis.

Um comentário que escuto desde a primeira vez em que tive contato com o Mulheres que Correm com os Lobos, e que se repete, de tempos em tempos, tem a ver com a bendita da chavinha que abre a porta do quarto onde o Barba Azul guarda os cadáveres das mulheres que mata. Hoje quero falar sobre isso.
Logo que conheci Mulheres que Correm com os Lobos, comecei a recomendá-lo para as mulheres com quem tinha contato. Uma amiga minha, que passava por uma separação complicada, leu a história do Barba Azul e deu risada de si mesma, porque se viu naquela situação em que a filha caçula, seduzida pelas gentilezas do monstro, pensa: Como sou boba! Por que me repugna tanto aquela barbinha azul? E mesmo se enxergando na inocência da personagem, em seguida fez uma reflexão que me fez pensar no quanto era, realmente, inocente, embora tivesse consciência do muito que já sofrera por conta de sua extrema credulidade.
Pensando sobre o fato da esposa do Barba Azul ter desobedecido sua ordem de não usar a chavinha que abria o quarto misterioso, refletiu que não devemos desejar saber tudo sobre as pessoas, porque todos temos segredos. E esse é um tipo de raciocínio que sempre surge quando colocamos essa situação em discussão. A invasão de privacidade.
Oraoraoraora...
É ÓBVIO que sabemos que todos têm seus segredos, e que devemos respeitá-los.
O que me surpreende e acaba fortalecendo essa tese de que somos treinados para não enxergar é o fato das pessoas não perceberem que há delitos e delitos. Que há pequenos segredos que devemos respeitar, sim, porque fazem parte da nossa individualidade e privacidade, mas que há grandes segredos, que colocam coisas muito mais sérias em risco.
A história do Barba Azul, pra mim, não fala sobre invasão de privacidade. Fala sobre auto-preservação.
Uma coisa que me intriga profundamente é não raro perceber nos leitores um julgamento mais severo em relação ao comportamento da mocinha, de desobedecer o marido para salvar sua própria vida, do que em relação ao comportamento do Barba Azul, de matar e decapitar suas esposas!
O que faz com que as pessoas sejam indulgentes em relação ao crime hediondo e apontem um dedo acusador contra aquele que está tentando garantir sua sobrevivência???
Não estou falando aqui de pequenas traições sexuais, que, afinal, fazem parte da natureza humana. Não estou falando de mentirinhas nem de invejas brancas, que praticamos e sentimos o tempo todo. Não estou falando de omissões que, mais do que esconder, tentam impor um limite na interferência do outro na nossa vida, o que é saudável...


Falo de relacionamentos que cerceiam nossa liberdade, que nos impedem de crescer, que minam nossas energias, que limitam nosso território de ação e nossa fertilidade criativa. Que, numa última instância, nos matam.
A heroína da história recebe instruções do marido e as acata. Quando ele diz que ela tem toda a liberdade para fazer o que quiser, mas impõe uma restrição, ela é incapaz de perceber que está vivendo menos, e não mais.
O Barba Azul não matava passarinhos... aquele quarto proibido estava abarrotado de cadáveres de mulheres!!! No entanto, as pessoas acreditam que a mocinha deveria respeitar a privacidade dele. Talvez acreditem que, se ela não tivesse descoberto o segredo do marido, ele seria o melhor marido do mundo até o fim de seus dias... :(
Essa inversão de valores inevitavelmente me traz algumas situações à mente.
Quantas vezes você já viu alguém que, para provar estar sendo vítima de chantagem, grava a cena do chantagista em plena ação, mas se vê privado do direito de usá-la, porque é contra a lei? Quantas vezes aquele que usa uma escuta para flagrar um corrupto responde por seu crime muito mais penosamente do que o próprio corrupto?
Recentemente a mãe de um bebê de meses desconfiou que seu marido maltratava o próprio filho quando da sua ausência. Gravou cenas do pai judiando terrivelmente da criança e não pôde usá-las, porque é proibido por lei. Se recorresse a isso para tentar fazer justiça, seria ela a responder pelo crime de invasão de privacidade. Acabou tendo que usar o subterfúgio de denunciar o marido por porte ilegal de armas. Conseguiu que o prendessem, mas por caminhos tortuosos.
Foram vários os relatos que escutei, ao longo da vida, de mulheres que se diziam com a auto-estima no chão por conta de maridos desleais, mas que, ao me relatarem suas histórias, colocavam-se como as vilãs, por tentarem descobrir com quem realmente estavam se relacionando. A culpa as corroia.
E outros vários os de mulheres que desconfiavam de falhas graves de caráter em seus companheiros, mas que, por terem interesses outros que não o do amor, assumiam deliberadamente a atitude de continuar na ignorância. Claro, até se tornarem vítimas dela.
Quantos de nós fingem não perceber que trabalham para criminosos, até que num belo dia acabam respondendo por algum processo pesado por terem cumprido alguma ordem sem questionar?
É importante perceber que, em todas essas situações, há o Barba Azul na vida real – o chantagista, o marido, o pai, o patrão, mas há o Barba Azul na vida subjetiva – esse lado sombrio de nossa psique que nos aconselha a não agir, não investigar, não criar, não enfrentar, não arriscar, não crescer. Aquela vozinha miúda que nos diz para fechar os olhos e não enxergar. Que nos induz a guardar nossos pincéis porque não temos talento. A engavetar nossos textos, porque estão aquém do que os leitores esperam. Que insiste para que nos escondamos num mundinho falsamente seguro e limitado, porque o mundo lá fora é perigoso.
A educação que recebemos, a cultura em que vivemos, um contexto às vezes pouco favorável aliados a um predador interno forte o bastante para nos paralisar cria essa cegueira fatal.
Vamos no embalo, enquanto isso nos serve, até que, abruptamente, tomamos um grande susto. E vemos nossa dignidade literalmente arrasada.
Então, se o próprio assassino nos coloca uma chavinha nas mãos e nos ordena que não a usemos, para que não descubramos aquilo de que já desconfiamos, o que fazemos?
Ficamos olhando abestalhados para a bendita da chavinha e obedecemos?
É uma opção.
Bem... depois que tivermos nossas cabeças decapitadas não vamos mesmo poder ficar resmungando...






Analú

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O Barba Azul - a história, na íntegra

Existe uma mecha de barba que fica guardada no convento das freiras brancas nas montanhas distantes. Como chegou até o convento, ninguém sabe. Uns dizem que foram as freiras que enterraram o que sobrou do seu corpo já que ninguém mais se dispunha a nele tocar. Desconhece-se o motivo pelo qual as freiras iriam guardar uma relíquia dessa natureza, mas é verdade. Uma amiga de uma amiga minha viu com seus próprios olhos. Ela diz que a barba é azul, da cor índigo para ser exata. É tão azul quanto o gelo escuro no lago, tão azul quanto a sombra de um buraco à noite. Essa barba pertenceu um dia a alguém de quem se dizia ser um mágico fracassado, um homem gigantesco com uma queda pelas mulheres, um homem conhecido pelo nome de Barba-azul.
Dizia-se que ele cortejava três irmãs ao mesmo tempo. As moças tinham, porém, pavor de sua barba com aquele estranho reflexo azul e, por isso, se escondiam quando ele chamava. Num esforço para convencê-las da sua cordialidade, ele as convidou para um passeio na floresta. Chegou conduzindo cavalos enfeitados com sinos e fitas cor-de-carmim. Acomodou as irmãs e a mãe nos cavalos, e partiram a meio-galope floresta adentro. Lá passaram um dia maravilhoso cavalgando, e seus cães corriam a seu lado e à sua frente. Mais tarde, pararam debaixo de uma árvore gigantesca, e o Barba-azul as regalou com histórias e lhes serviu guloseimas.
"Bem, talvez esse Barba-azul não seja um homem tão mau assim", começaram a pensar as irmãs.
Voltaram para casa tagarelando sobre como o dia havia sido interessante e como haviam se divertido. Mesmo assim, as suspeitas e temores das duas irmãs mais velhas voltaram, e elas juraram quem não veriam o Barba-azul de novo. A irmã mais nova, no entanto, achou que, se um homem podia ser tão encantador, talvez ele não fosse tão mau. Quanto mais ela falava consigo mesma, menos assustador ele lhe parecia, e sua barba também parecia menos azul.
Portanto, quando o Barba-azul pediu sua mão em casamento, ela aceitou. Ela havia refletido muito sobre a sua proposta e concluído que ia se casar com um homem muito distinto. Foi assim que se casaram e, em seguida, partiram para seu castelo no bosque.
- Vou precisar viajar por algum tempo - disse ele um dia à mulher.
- Convide sua família para vir aqui se quiser. Você pode cavalgar nos bosques, mandar os cozinheiros prepararem um banquete, pode fazer o que quiser, qualquer desejo que seu coração tenha. Para você ver, tome minhas chaves. Pode abrir toda e qualquer porta das despensas, dos cofres, qualquer porta do castelo; mas essa chavinha, a que tem nos altos uns arabescos, você não deve usar.
- Está bem, vou fazer o que você pediu. Parece que está tudo certo. Portanto pode ir, meu querido, não se preocupe e volte logo.
- E assim ele partiu, e ela ficou.
Suas irmãs vieram visitá-la e elas sentiam, como todo mundo, muita curiosidade a respeito das instruções do dono da casa quanto ao que deveria ser feito enquanto ele estivesse fora. A jovem esposa falou alegremente: - Ele disse que podemos fazer o que quisermos e entrar em qualquer aposento que desejarmos, com exceção de um. Só que eu não sei qual é o aposento. Só tenho uma chave e não sei que porta ela abre.
As irmãs resolveram fazer um jogo para ver que chave servia em que porta. O castelo tinha três andares, com cem portas em cada ala, e como havia muitas chaves no chaveiro, elas iam de porta em porta, divertindo-se imensamente ao abrir cada uma delas. Atrás de uma porta, havia uma despensa para mantimentos, atrás de outra, um depósito de dinheiro. Todos os tipos de bens estavam atrás das portas, e tudo parecia maravilhoso o tempo todo. Afinal, depois de verem todas aquelas maravilhas, elas acabaram chegando ao porão e, ao final do corredor, a uma parede fechada. Ficaram intrigadas com a última chave, a que tinha o pequeno arabesco.
- Talvez essa chave não sirva para abrir nada - Enquanto diziam isso, ouviram um ruído estranho - errrrrrr.
Deram uma espiada na esquina do corredor e - que surpresa! - havia uma pequena porta que acabava de se fechar. Quando tentaram abri-la, ela estava trancada.
- Irmã, irmã, traga sua chave - gritou uma delas - Sem dúvida é essa a porta para aquela chavinha misteriosa.
Sem pestanejar, uma das irmãs pôs a chave na fechadura e a girou. O trinco rangeu, a porta abriu-se, mas lá dentro estava tão escuro que nada se via.
- Irmã, irmã, traga uma vela. - Uma vela foi acesa e mantida no alto um pouco mais para dentro do aposento, e as três mulheres gritaram ao mesmo tempo, porque no quarto havia uma enorme poça de sangue; ossos humanos enegrecidos estavam jogados por toda parte e crânios estavam empilhados nos cantos como pirâmides de maçãs.
Elas fecharam a porta com violência, arrancaram a chave da fechadura e se apoiaram umas nas outras arquejantes, com o peito arfando. Meu Deus! Meu Deus!
A esposa olhou para a chave e viu que ela estava manchada de sangue. Horrorizada, usou a saia para limpá-la, mas o sangue prevaleceu.
- Oh, não! - exclamou. Cada uma das irmãs apanhou a chave minúscula nas mãos e tentou fazer com que voltasse ao que era antes, mas o sangue não saía.
A esposa escondeu a chavinha no bolso e correu para a cozinha. Quando lá chegou, seu vestido branco estava manchado de vermelho do bolso até a bainha, pois a chave vertia lentamente lágrimas de sangue vermelho-escuro.
- Rápido, rápido, dê-me um esfregão de crina - ordenou ela à cozinheira. Esfregou a chave com vigor, mas nada conseguia deter seu sangramento. Da chave minúscula transpirava uma gota após a outra de sangue vermelho.
Ela levou a chave para fora, tirou cinzas do fogão a lenha, cobriu a chave de cinzas e esfregou mais. Colocou-a no calor do fogo para cauterizá-la. Pôs teia de aranha nela para estancar o fluxo, mas nada conseguia deter as lágrimas de sangue.
- Ai, o que vou fazer? - lamentou-se ela. - Já sei, vou guardar a chave. Vou colocá-la no guarda-roupa e fechar a porta. Isso é um pesadelo. Tudo vai dar certo.
E foi o que fez.
O marido chegou de volta exatamente na manhã do dia seguinte e entrou no castelo já procurando pela esposa.
- E então, como foram as coisas enquanto eu estive fora?
- Tudo bem, senhor.
- Como estão minhas dispensas? - trovejou o marido.
- Muito bem, senhor.
- E como estão meus depósitos de dinheiro? - rosnou ele.
- Os depósitos de dinheiro também estão bem, senhor.
- Então, tudo está certo, esposa?
- É, tudo está certo.
- Bem - sussurrou ele - então é melhor devolver minhas chaves.
Com um relancear de olhos, ele percebeu a falta de uma chave.
- Onde está a menorzinha?
- Eu... eu a perdi. É, eu a perdi. Estava passeando a cavalo, o chaveiro caiu e eu devo ter perdido uma chave.
- O que você fez com ela, mulher?
- Não... não me lembro.
- Não minta para mim! Diga-me o que fez com aquela chave!
Ele tocou seu rosto como se fosse lhe fazer carinho, mas em vez disso a segurou pelos cabelos.
- Sua traidora! - rosnou, jogando-a no chão. - Você entrou naquele quarto, não entrou?
Ele abriu o guarda-roupa com brutalidade e a pequena chave na prateleira de cima havia sangrado, manchando de vermelho todos os belos vestidos de seda que estavam pendurados.
- Chegou a sua vez, minha querida - berrou ele, arrastando-a pelo corredor e pelo porão adentro até pararem diante da terrível porta. O Barba-azul apenas olhou para a porta com seus olhos enfurecidos, e ela se abriu para ele. Ali jaziam os esqueletos de todas as suas esposas anteriores.
- Vai ser agora!!! - rugiu ele, mas ela se agarrou ao batente da porta sem largar, implorando por clemência.
- Por favor, permita que eu me acalme e me prepare para a morte. Conceda-me quinze minutos antes de me tirar a vida para que eu possa me reconciliar com Deus.
- Está bem - rosnou ele - Você tem seus quinze minutos, mas prepare-se.
A esposa correu escada acima até seus aposentos e determinou que suas irmãs fossem para as muralhas do castelo. Ajoelhou-se para rezar, mas, em vez de rezar, gritou para as irmãs.
- Irmãs, irmãs, vocês estão vendo a chegada dos nossos irmãos?
- Não vemos nada, nada na planície nua.
A cada instante ela gritava para as muralhas.
- Irmãs, irmãs, estão vendo nossos irmãos chegando?
- Vemos um redemoinho, talvez um redemoinho de areia bem longe.
Enquanto isso, o Barba-azul esbravejava para que sua esposa descesse até o porão para ser decapitada.
- Irmãs, irmãs! Estão vendo nossos irmãos chegando? - gritou ela mais uma vez.
O Barba-azul berrou novamente pela esposa e veio subindo a escada de pedra com passos pesados.
- Estamos, estamos vendo nossos irmãos - exclamaram as irmãs. - Eles estão aqui e acabaram de entrar no castelo.
O Barba-azul vinha pelo corredor na direção dos aposentos da esposa.
- Vim apanhá-la - gritou ele. Suas passadas eram pesadas; as pedras no piso se soltavam; a areia da gamassa caía esfarinhada no chão.
No instante em que ele entrou nos aposentos com as mãos esticadas para agarrá-la, seus irmãos chegaram galopando pelo corredor do castelo ainda montados, entrando assim no quarto. Ali eles encurralaram o Barba-azul fazendo com que caísse até a balaustrada. E ali mesmo, com suas espadas, avançaram contra ele, golpeando e cortando, fustigando e retalhando, até derrubá-lo ao chão e matando-o afinal, deixando para os abutres o que sobrou dele.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Aquecimento pra leitura de "A Bendita da Chavinha"


Nesse momento estou escrevendo mais uma reflexão sobre o Barba Azul (sim, o chato!). Não tem jeito, é preciso.
Enquanto estava aqui, lendo e pensando sobre ele, me deparei com uma nota, a seu respeito, em Mulheres que Correm com os Lobos (Clarissa Pinkola Estés).
Achei que valeria a pena transcrever a nota aqui, porque ela, por si só, já diz muito, e sua leitura pode ser um bom aquecimento pra que, quando eu postar A Bendita da Chavinha, (que estou terminando), alguém já tenha pensado um pouco sobre o assunto, e, quem sabe, possa me ajudar na reflexão.
Lá vai:
No folclore, na mitologia e nos sonhos, o predador natural quase sempre tem seu próprio predador ou perseguidor. É o combate entre esses dois que afinal produz a mudança ou o equilíbrio. Quando isso não ocorre, ou quando não surge nenhum antagonista apreciável, o relato costuma ser chamado de história de terror. A ausência de uma força positiva que se oponha com sucesso ao predador negativo faz surgir um medo extremo no coração dos seres humanos.
Da mesma forma, no dia-a-dia, há uma quantidade de ladrões-de-luz e assassinos-da- consciência soltos por aí. Geralmente, uma pessoa predatória apropria-se indevidamente da seiva criadora da mulher, tomando-a para seu próprio uso ou prazer, deixando-a pálida e sem saber o que ocorreu enquanto o predador de certo modo vai ficando mais corado e animado. O predador deseja que a mulher não preste atenção aos seus próprios instintos para que ela não perceba o sifão que está preso à sua mente, sua imaginação, seu coração, sua sexualidade, ao que seja.

O modelo de renúncia à nossa vida essencial pode ter começado na infância, estimulado por quem se encarregava da criança e queria que o talento e beleza da criança suplementassem o vazio e a fome dessa mesma pessoa. Ter uma formação dessas dá enorme poder ao predador natural e nos prepara para ser uma presa para os outros. Enquanto seus instintos não voltarem a funcionar corretamente, a mulher criada dessa forma é extremamente vulnerável a ser dominada pelas necessidades psíquicas tácitas e devastadoras dos outros. Geralmente, a mulher com os instintos em ordem sabe que o predador está se insinuando por perto quando ela se descobre num relacionamento ou numa situação que faz com que sua vida se limite, em vez de se ampliar.


Vale a pena pensar um pouco sobre isso. ;)
Em seguida, vou comentar sobre a chavinha, espero participação, hein! ;)

Beeeijos!!! :)

Analú

domingo, 28 de novembro de 2010

Poesia - Alta Estação

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Tem gente dentro de mim.
Humanos, humaninhos, humanóides,
humanantes.
Gente das mais variadas.
Uma imensa gama de seres
das mais diferentes fornadas.
Completos, carentes,
bacanas, contentes,
sacanas, doentes,
risíveis,
possíveis,
incríveis.
Gente que anima
e que emociona, gente que ensina
e gente que não funciona.
Estacionam,
param, correm,
transitam.
Moram, lotam,
ocupam espaços,
me habitam.
Me aquecem o sangue,
dão frio na barriga,
disparam meu coração,
provocam intriga.
Me acalmam, serenam,
me fazem pensar.
Multiplicam neurônios,
fabricam sinapses,
produzem meus sonhos,
e dormem tranquilos.
Cada um em sua casa,
em sua cama,
seu sono profundo
de corpos cansados
e almas em férias.
Enquanto eu,
ponto turístico em pessoa,
fervilho, plena alta estação,
superlotada.
Nem venha!
Vagas esgotadas.

Analú (2007)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Coisas que as mulheres andam fazendo pelo mundo - alguém me ajuda a entender?




Ontem, logo cedo, me deparei com uma notícia que me pareceu estapafúrdia e que ficou voltando à minha cabeça durante o dia. Fiquei me perguntando se eu não entendera direito, e se a minha interpretação dos fatos estava prejudicada demais pela minha ignorância quanto à cultura e ao contexto da Ucrânia. Pode ser.
Segundo a notícia, lá, desde 2008, um grupo de ativistas femininas intitulado Femen, formado por universitárias de Kiev, defende os direitos humanos e das mulheres, protestando sem a parte de cima da roupa, no estilo topless.
O interessante é que o alvo principal dos protestos é a indústria do sexo, que hoje, na Ucrânia, um dos principais pontos de turismo sexual do mundo, atinge níveis assustadores, e corre o risco de crescer mais ainda, devido à crise econômica e ao alto índice de desemprego. Segundo a matéria, estima-se que 60% das universitárias recorra à prostituição para se manter.
Veja o paradoxo: para protestar contra a prostituição e o turismo sexual, a Femen criou a campanha A Ucrânia Não é Bordel, em que as garotas vão às ruas vestidas como prostitutas. Fui ao Google (é claaro! ) e, encontrando lá uma quantidade enorme de fotos dos protestos que essas mulheres fazem mostrando-se e assumindo posturas realmente de prostitutas, fiquei embasbacada. Olhando as fotos, é inevitável imaginar a Ucrânia como um imenso bordel a céu aberto. O mundo está vendo isso. Imagino que aqueles que têm interesse na indústria do sexo, nesse momento devem estar fazendo as malas pra ir pra lá.
Uma das estudantes explicou que na sociedade ucraniana a mulher tem um papel menor, e o lugar que lhe cabe é na cozinha ou na cama.
Diz a matéria:
Questionadas se o fato de usarem o corpo para chamar atenção não diminui o valor ou contraria o movimento, elas dizem não ver problemas.
“Nós começamos vestidas e ninguém reparava. Eu sou uma grande fã de tirarmos nossas roupas. É como conseguimos atenção da nossa plateia”, diz Shevchenko. “É tudo o que temos, nosso corpo. Nós não temos vergonha disso”, diz a estudante de jornalismo, Inna, 20, à Reuters.
Ou seja: cada um usa a arma que tem.
A Femen vem intensificando seus protestos, cada vez mais políticos, e o protesto da semana passada foi a favor da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani, condenada à morte no Irã por adultério.
Lendo a matéria, percebe-se que as garotas não devem ter só o corpo, como afirmou a estudante, mas também inteligência, uma vez que se mobilizam politicamente e defendem causas justas.
Aí, fico me perguntando: será que a nudez é mesmo a única arma que essas mulheres têm pra se fazerem enxergar? Isso me soou tão estranho...
A garota também se queixa da sociedade ucraniana achar que lugar de mulher é na cozinha.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, elas poderiam protestar contra aqueles que pensam assim cozinhando e oferecendo-lhes um maravilhoso banquete em praça pública... Mas a impressão que tenho é de que não gostam de cozinhar tanto quanto gostam de ficar nuas.
Eu não sei. Será que essas meninas estão tão mergulhadas na cultura da prostituição, que, apesar de conseguirem enxergar o mal que há nisso, não conseguem vislumbrar qualquer alternativa à de usar seus corpos nus para obter algo? Será que elas não estão premiando aqueles a quem querem atingir? Será que um bando de mulheres vestidas como prostitutas andando pelas ruas da Ucrânia pode mesmo combater a indústria da prostituição? Ou elas estão fazendo um marketing gratuito a favor dessa indústria?
Nunca me passou pela cabeça, e eu não quero que passe, que um corpo nu de mulher pudesse ser usado como protesto ou agressão.
Que ninguém me acuse de pudica, porque, realmente, a nudez não é algo que me assusta. O que me assusta é esse uso abusivo da nudez em nome de qualquer coisa.
A nudez compartilhada com quem gostamos em situações de afetividade é algo divino.
Imagino que se eu viesse a usar meu corpo nu para protestar ou agredir, isso me faria muito triste...
Como me faz triste essa banalização da nudez feminina.
Há tantas formas de se chamar a atenção a uma causa... será que essas mulheres acreditam mesmo que seu corpo é a única coisa que têm?
Sou mulher, e fico me esforçando para não julgar aquilo que não entendo. Mas eu não vejo homens fazendo essas coisas...
Às vezes me parece que uma das grandes desgraças da mulher é não saber lidar direito com esse fascínio que um belo corpo feminino exerce sobre os homens.
Somos corpos, sim, mas somos mais do que isso, muito mais. Não é necessário que saiamos nuas às ruas para que nos enxerguem, porque, barganha por barganha, uma mulher que simplesmente cruza os braços pára tudo à sua volta. A qualquer mulher que queira protestar contra algo, eu sugiro: cruze os braços. Cruze os braços e não faça nada e observe o que acontece.
Às meninas da Ucrânia, talvez eu sugerisse que simplesmente fechassem as pernas.
Mulheres que se expõe como carne sem alma, em nome de algo que não o afeto, emprestam ao olhar dos homens um desdém triste de se ver, e que acaba atingindo todas nós.
Eu tenho saudade de um tempo que não vivi, mas sobre o qual leio ou escuto falar, em que um tornozelo de mulher à mostra causava frisson nos homens. Em que nossos corpos eram tratados como algo realmente precioso.
Afinal, alguém pode me elucidar? O que querem, de fato, as meninas da Ucrânia?

domingo, 7 de novembro de 2010

Poesia - Enfim, adulta












Perambulo entre realidade e fantasia
com destreza de menina levada.
Afinal, a realidade – disseram-me -
não passa de um truque.
Vivo uma como outra,
outra como uma
e vice-versa.
Não questiono mais a possibilidade
do virtual vir a ser real.
Não cobro, não espero, não minto.
Apenas aceito e sinto.
O que toco pode ser enganoso.
O intangível, às vezes, me faz feliz de verdade.
Flerto com a loucura bem de perto,
e loucamente preservo-me sã.
Brincar é pra maduros,
e o grande barato é estar sóbria
pra sentir tudo com intensidade...

Analú :)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Eu tenho muitamuitamuita vergonha disso tudo. :(

Eu não tenho por hábito escrever sobre política. A vivo em todos os minutos da minha vida, pois tenho consciência do quanto somos, realmente, governados pelos governos. Não se faz nada com liberdade total, e cada passo que damos, tem sempre, por trás dele, um monitoramento. Vivemos sob as consequências da má gestão governamental, em todos os sentidos. São leis mal feitas e mal aplicadas, tributos cobrados e mal administrados, descaso com a natureza e com nossa qualidade de vida. Descaso com nossa saúde e com nossa educação. Pouco caso, desmazelo, desrespeito. Dormimos e acordamos, nos alimentamos e trabalhamos, tentamos nos divertir e ter acesso a um pouco de cultura, tentamos ter uma vida amorosa, tudo isso de acordo com o que nossos governos nos permitem.
Por mais que estejamos momentaneamente bem, não há como estar totalmente bem quando o todo é extremamente problemático. Ou seja: não tem como. Mesmo que não queiramos, somos afetados.
Mas, não costumo falar sobre isso, talvez justamente por ceticismo, e não creio que seja possível defender um ou outro político, porque, ao longo da vida, fui percebendo que mal conseguimos pôr a mão no fogo por nós mesmos, que dirá por outros, e envolvidos em ambiente tão contaminado...
Vejo que as coisas não mudam. Vejo que os mesmos permanecem por infinitos mandatos, em cargos diversos, provavelmente pra que o descaramento não pareça tão descarado. Vejo que as tetas devem ser muito gordas, porque, por menos que alguns façam, o que menos lhes passa pela cabeça é abrir mão da mamata. Vejo que pelos ralos da corrupção escoa nosso suado dinheiro, e que trabalhamos muito mais do que deveríamos pra ter uma vida minimamente decente. E que, quando precisamos apelar para os serviços públicos, melhor rezar, porque a competência passa longe dali.
A péssima qualidade da nossa educação vem criando gerações incapazes de atuar positivamente no meio em que vivem. Incapazes de se revoltar seriamente contra as injustiças. Incapazes de brigar por seus direitos. A ignorância e impotência alimenta o sistema, e onde vamos parar?
Daqui a alguns dias seremos obrigados a votar. Sim, isso é uma democracia, mas somos obrigados a votar. Claro, porque quem, em sã consciência, se mobilizaria voluntariamente para apoiar alguém desse maravilhoso elenco que nos tem sido apresentado todos dias?
Eu não gosto de generalizar, mas nesse balaio de gatos fica muito complicado detectar se há algo que valha a pena.
E quero deixar aqui a minha indignação por sermos submetidos a essa enooorme vergonha.
O horário político me vexa profundamente. Há os que se apresentam como portadores de caráter ilibado, quando sabemos, há muito, que não o são. Há os que se gabam por terem ficha limpa, como se isso fosse virtude e não obrigação. Há os que já prometeram, tiveram inúmeras oportunidades, não cumpriram e continuam prometendo.
Mas, esse ano, há mais alguns que me fizeram sentir muuuita vergonha do que estamos vivendo. Não é possível que um povo tenha que aceitar o fato de que não é preciso se ter feito nada de bom nessa vida pra se merecer ser candidato a qualquer coisa. Não é possível que só o dinheiro determine quem possa estar lá, pleiteando um mandato. Não é possível que aja pessoas que pensem em votar em candidatos que nem ao menos alfabetizados são. E não é possível que eu tenha que ligar a TV e me deparar com gente pedindo voto e se dizendo abestada. Com gente que mal saiba falar e expor suas idéias. Com mulheres que se vestem como prostitutas, invadindo nossas casas e tripudiando sobre nossa inteligência. Com gente que se diz contra a pedofilia, mas demonstra, pela postura, algum tipo de psicopatia.
O que é isso??????????????????????????????
Tenho recebido longos e-mails de gente gabaritada extremamente revoltada com tudo. As pessoas repassam esses e-mails, numa tentativa de espalhar as informações e a indignação. Mas, infelizmente, percebo que longos textos de profundos conhecedores não atingem o povo, que não acessa a Internet, que não tem tempo para ler, e que, ao se defrontar com um texto mais intelectualizado, simplesmente desiste de entender.
Tenho visto alguns adolescentes defendendo a idéia da anulação do voto, numa tentativa de impugnação das eleições e renovação geral. Sinceramente, não acredito que isso fosse algo passível de se realizar.
Mas também, sinceramente, estou pensando seriamente em fazer isso.
E espero que esse meu texto, simples e indignado, atinja ao menos alguma meia dúzia de leitores, pra que eu não me sinta totalmente inútil nesse cenário tão vergonhoso.

Obrigada a quem teve a paciência de ler esse desabafo.

Analú

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Romance - Traições - parte XVIII

Caio apenas cochilava, quando se foram, e Raul achou que o menino poderia andar. Natália deixava o garoto se recostar nela, quase dormindo em pé. Raul abriu a porta do carro e ergueu o encosto. Natália ajudou Caio a se ajeitar no banco traseiro, enquanto Raul chamava o porteiro. O menino queria dormir a todo custo, e não ajudava em nada. Natália ajeitou seus pés, depois sua cabeça, e levou o encosto do banco de volta ao lugar. Então deu de cara com um verdadeiro emaranhado de cabelos loiros. A porta do carro estava aberta e a luz interna, ainda acesa, lhe permitiu ver com total clareza que eram cabelos loiros e longos. Antes de Raul voltar ao carro, conseguiu, atrapalhadamente, pegar os fios e, embolando-os, colocá-los no bolso da calça. Não sabia exatamente o que estava fazendo, nem pra quê. Numa fração de segundo considerou várias possibilidades. Sentiu-se mal por não conseguir ser mais direta e simplesmente perguntar a Raul de quem eram aqueles cabelos. Mas não conseguia raciocinar direito. Não conseguia falar. Não conseguia nem ao menos olhar pra ele, que acabava de entrar no carro. Não sentia nada. Queria chegar em casa e poder ver com clareza aqueles fios. Queria estar certa do que estava vendo. Talvez, então, se sentisse segura para perguntar qualquer coisa para Raul. Mas não queria ser ridícula, demonstrando qualquer desconfiança. Ficou calada. Quase não respirava. Raul também estava quieto. Sabia que a aborrecera, fazendo pouco caso do seu trabalho na frente dos outros. E não estava querendo brigar. Não se trocaram uma só palavra até chegarem em casa. Natália pediu a Raul que carregasse o garoto. Já adormecera. Raul não quis desagradá-la mais uma vez. Entraram, e ele colocou o garoto sobre a cama. Natália teve ímpetos de correr ao banheiro, para verificar o que tinha no bolso, mas se controlou. Não queria demonstrar que havia qualquer coisa errada. Tirou as roupas de Caio, vestiu-lhe um pijama, cobriu-o e deu-lhe um beijo no rosto. Ficou quieta, olhando para o menino. Não queria sair dali. Não queria verificar nada. Arrependera-se por ter guardado os fios. Queria ficar ali, quieta, ao lado do filho.

- Ei! - Raul a despertou - Não vem pra cama?

- Já vou.

Ela se levantou morosamente e se fechou no banheiro. Passou a mão pelo rosto, fechando os olhos. Respirou fundo, tentando pensar melhor. Ficou quieta por alguns instantes, sentindo uma mórbida expectativa. Enfiou os dedos no bolso apertado da calça jeans e procurou os fios. Achou-os com facilidade. Puxou-os, sentindo um certo nojo. Se encostou na pia, aproveitando a luz sobre o espelho, que iluminava melhor. Então puxou um fio. E o fio foi se desenrolando, ficando cada vez mais longo e parecia cada vez mais loiro. Brilhava, muito claro. Sentiu aflição. Puxou um pedaço de papel higiênico, embrulhou muito bem os fios e jogou o embrulho no lixo. Abriu a torneira e começou a lavar as mãos. Lavou, lavou, lavou até se cansar. Então arrancou as roupas e se enfiou novamente no banho. Não queria sair do banheiro. Não queria perguntar nada a Raul, correndo o risco de ouvir qualquer mentira. Desejou que ele adormecesse, pra que pudesse pensar com mais calma. Estava assustada com a própria reação. Jamais duvidara de Raul. Infidelidade, traição, eram palavras que não existiam em seu vocabulário. Sempre fora tão segura de si... Saiu do chuveiro, deu de cara com a própria imagem, no espelho, e se perguntou: - Por quê? Então sentou e sentiu uma agonia enorme. Por quê? - Insistia, pra si mesma. Era uma mulher comum demais... Por anos seguidos priorizara o bem-estar do marido, a educação do filho... Estivera tão preocupada com as dificuldades financeiras, com os problemas caseiros, que esquecera por completo de si mesma... Aprendera, cada vez mais, a ser uma boa dona-de-casa... Mas quem dava valor pra isso?

- Não. - Tentava se manter fria. -Alguns fios de cabelo loiro no carro de Raul não eram prova concreta de nada. Seria mais normal lhe perguntar quem entrara no carro, se dera carona a alguém... Mas Raul jamais dera carona a ninguém. E sempre lhe alertava para que também não desse... Então percebeu que estavam distantes demais. Porque se sentia completamente sem coragem para expressar qualquer sentimento. Teve um medo horrível de que ele lhe dissesse qualquer tolice, ou de que disfarçasse... Ficou um tempo imaginando de que outras formas aqueles cabelos podiam ter chegado lá. Estava sendo idiota. Não havia outras formas. Com certeza uma loura estivera sentada ao lado dele. E se tivesse emprestado o carro a algum amigo? Não. Isso era totalmente improvável. Jamais emprestara o carro a ninguém...

Estava fraca, vulnerável demais. Devia sair dali e sondar Raul. Perguntar-lhe o que fizera durante o dia, onde estivera... Devia dar chance a ele de lhe contar se estivera com alguém, em que circunstância...

Quando deitou ao lado dele, ele já dormia. Ficou olhando seu rosto imóvel. Tinha uma expressão totalmente inocente. Sentiu um certo pavor, pensando na possibilidade de estar enganada. Tinha tanta confiança nele que jamais pensara em nada parecido com aquilo. Ele era seu marido, seu companheiro, o pai de seu filho... Era o homem com quem compartilhava tudo... Era o homem que sabia de seus sentimentos mais íntimos... Se estavam distantes, nos últimos tempos, era devido àquela situação miserável... Era a falta de dinheiro, as dificuldades, o desemprego... Tinham tantos problemas práticos que há muito não falavam dos próprios sentimentos. Ela deixara de questionar o amor dele, deixara de ter dúvidas tolas em relação às coisas do coração... Tentaram unir suas forças pra superar a crise, pra aguentarem viver com tantas dificuldades... Mas ela se sentia tão carente e precisava tanto de outras coisas... Sentia tanta falta da paixão... Sentia tanta falta de namorar, de se sentir amada... Mas o culpava por isso tudo. Será que ele também se sentia assim? Mas, então, por que não a procurava mais, por que não se abria? Não... Não era possível. Seria ingratidão demais, se ele a estivesse traindo. Ou se estivesse pensando em fazer isso... Estavam com problemas há tanto tempo e ela jamais deixara de estar ao lado dele... Mas então percebeu que a recíproca não era verdadeira. Não sentia que ele estivesse sempre ao seu lado... Agora estava ali, dormindo como um anjo... Não sabia o que era uma insônia. Parecia estar sempre cansado, talvez saciado... Pensou em quantas vezes perdia o sono por desejá-lo. E ele dormia. Parecia não ter desejo algum. Sentiu uma vertigem. Fechou os olhos, colocou as mãos sobre o rosto. Estava enjoada. Tinha um peso no estômago. Seu mundo podia estar ruindo sem que ela estivesse percebendo. Não teria mais paz. Sabia que estaria sempre procurando pistas, evidências... Se transformaria nessas mulheres neuróticas que viviam à cata de perfumes, cabelos, marcas de batom... Não! - ordenou mentalmente a si mesma. Não podia cair nessa. Tinha que ser clara com ele. Tinha que lhe perguntar à queima-roupa. Mas... E se não fosse nada disso? Ia ofendê-lo. Poderia criar um péssimo clima entre eles. Estaria demonstrando uma fraqueza que não devia existir. Ele não a levaria a sério. A chamaria de tola. Diria, mais uma vez, que enquanto se preocupava com um emprego e com coisas vitais, lá estava ela com futilidades. Ele considerava "futilidades" seus desejos, suas angústias, suas dúvidas.

Teve dó de si mesma. De seu corpo prostrado, impotente. De sua covardia. De sua ansiedade. De sua fraqueza. Sentia-se fraca, fraca, minada. Ao seu lado estava o homem a quem dedicava todos os seus pensamentos, todas as suas ações, todo o seu tempo. Jamais estivera tão claro em sua mente o quanto se doava, o quanto vivia em função dos outros. Jamais estivera tão claro que tudo, absolutamente tudo o que fazia, era esperando alguma reação dele. Mas também jamais estivera tão claro que ele era um homem. Antes de ser seu marido, antes de ser o pai de Caio, era um homem. E talvez não fosse tão especial como ela sempre desejara que fosse... Talvez fosse um homem comum... Estava na rua, no mundo, se expunha muito mais do que ela... Era possível se apaixonar por alguém. Por que não? Algumas cenas de sua vida lhe passavam pela memória como uma retrospectiva. Como um resumo. Cenas que não compreendera, atitudes que não conseguira justificar... Suas ausências, seus atrasos, seu desinteresse. A falta de paciência com o filho. O nervosismo. A falta de diálogo.

Lembrou-se da semana anterior, quando haviam transado. Fora tudo tão rápido, tão desesperado... E estava sendo sempre assim. Sempre julgava que o desespero se devia à abstinência, porque quase não ficavam juntos. Agora via a coisa por outra ótica. Talvez, pra ele, aquilo fosse uma obrigação que tinha que cumprir de vez em quando. Talvez aquilo que considerava desespero não fosse desespero, mas desafeto...

Quis morrer. A idéia de que ele pudesse fazer amor com ela por pura obrigação, de que ele pudesse nem gostar muito daquilo, lhe doeu como um soco no peito. Se sentiu sufocar. Sentou-se, tentou respirar melhor. Olhou novamente pra ele. Não se mexera. Estava ali, quieto, sem poder imaginar tudo o que a apavorava naquele momento. Confiava nele como se confia numa mãe, num irmão. Será que teria que se considerar uma idiota por ter sido tão crente? Pensou em acordá-lo. Mas ele não conseguiria. Tinha o sono muito pesado. Não acordaria direito, não a levaria a sério... Foi até a cozinha, tomou um copo de água com açúcar. Talvez a ajudasse a dormir. Só precisava dormir bem para ficar com as idéias mais claras. Estava cansada demais. Era como se estivesse vendo tudo através de uma lente de aumento. As coisas estavam se agigantando, e a dominavam... Voltou pra cama, deitou, sem se deixar encostar nele, e procurou dormir. Pediu a Deus que lhe permitisse acordar melhor, no dia seguinte. Fechou os olhos e deixou aquela tristeza toda invadi-la. Dormiu em minutos, enrolada como um caracol.

(Trecho do romance Traições, de Ana Lucia Sorrentino, à venda através do e-mail analugare@yahoo.com.br)

sábado, 11 de setembro de 2010

Confusões Tecnológicas




              A carência vinha batendo tão forte, que qualquer ambiente parecia promissor. Uma amiga havia recebido uma cantada avassaladora na fila do açougue. Por que não? Estar sempre preparada passou a fazer parte de uma estratégia de otimização do aproveitamento de oportunidades. Nunca mais saiu de rasteirinha, cara lavada, cabelo desgrenhado. Chapinha, rímel e salto alto tornaram-se itens imprescindíveis na composição do visual dia a dia. Assim, sempre: montada.
       A internet já provocara um certo desencantamento... O perambular constante pelas várias redes de relacionamento esvaziara a ilusão de que podia haver gente interessante e bem intencionada no espaço virtual. Mais fácil ir pra Marte... :(
        Mas... ainda restara Maurício. A simples lembrança da possível existência de um exemplar masculino singular cheio de qualidades, já a fez esboçar um sorriso no rosto pensativo. Puta cara legal... Interessado, constante, solícito... E de perfil diferenciado. Palestrante, frequentador de Budismo e Yoga, apreciador de bons vinhos. Até de gastronomia entendia. Se a imagem que vendia correspondesse razoavelmente à realidade, esse homem realmente devia valer a pena... 
            Excetuando o fato de que seu Face parecia uma vitrine um pouco elaborada demais, nada mais nele lhe provocava desconfiança. Nunca encontrava nada que chocasse em seu mural. Uma xavequeira ou outra fazendo alguma gracinha na óbvia intenção de tornar público algo que, talvez, em algum momento, tivesse rolado, ou não, era a coisa mais normal do mundo. Ter os recados abertos a quem quisesse ver parecia sinal de transparência... 
           Quem sabe, qualquer hora criaria coragem pra lhe mandar um torpedo? Torpedos quebravam um galhão...  numa ligação normal, uma certa insegurança na voz podia delatar fragilidade, e resultar em fracasso. Um torpedinho inocente e, se tudo desse certo, ele responderia positivamente. Se não respondesse, restaria a dúvida quanto ao recebimento da mensagem. Isso era sempre um consolo. Melhor o benefício da dúvida do que a certeza de um NÃO em alto e bom som. O risco parecia bem menor. Enfim, não morreria se não desse certo.
            Estava assim, nessas divagações, Em Carne Viva e o maravilhoso Mark Ruffalo na mão, numa fila emperrada, dentro da Blockbuster, e um esbarrão estabanado leva DVD, pipoca, chocolate, tudo pro chão. Pra aliviar o desconforto, a inevitável pergunta: 
             - Esse filme é bom? 

            É assim que, numa fila, não de açougue, mas de locadora, descobre um sorriso lindo de um outro... Maurício??? Ela não consegue deixar de rir, surpresa com a louca coincidência. 
            Pensava em um, esbarra em outro... uma troca de opiniões sobre os respectivos filmes, uma semelhança de gostos, e caminham juntos pro estacionamento. Tanta empatia, celulares na mão, por que não? Cria coragem e pede o número dele. E não é que ele dá? :)

            Voltou pra casa pensando. Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. O outro Maurício era todo especial, mas amarrado. Já haviam se falado tantas vezes, o xaveco rolava solto, mas ele não se atrevia a nada. Quem sabe esse, encontrado assim, num susto, fosse mais promissor? Tão simpático...
            De repente, o torpedo tão ensaiado pra um acabaria sendo mandado pro outro. Afinal, gostoso é o que rola tranquilamente, não o suado, como apregoam por aí.
            Em casa, num acesso de solidão e ousadia, pegou o celular. Nova mensagem. Resolveu ser objetiva: - Maurício, vem me ver! :) Não pensou duas vezes. Apertou "enviar", meio apavorada, e já era. Agora era esperar. Surpreendentemente, a resposta veio em menos de um minuto! - Um chopp à noitinha? Arregalou os olhos, desacreditando em tamanha objetividade. Esse cara devia ser descomplicado! Milaaagre! Combinaram, através de torpedos, a hora e o local. Ele a pegaria em casa mesmo, assim já conheceria o território dela.
            A aflição no estômago, o ritual do banho, depilação (nunca se sabe), o perfume, o espelho... a insegurança, a espera, a campainha!!! 
            Abre a porta e dá de cara com um enorme maço de flores, que a desestabiliza. Deusdocéu, que homem é esse? Pega as flores, agradecendo, e enxerga que homem é esse: é Maurício, o ... Maurício!!! O do Face, e não o da locadora!!! Na ânsia por superar a insegurança e ser ousada, quis ser rápida e mandou o torpedo pro Maurício errado! Que coooisa!!!
            Agora era respirar fundo e não deixar o pobre perceber a confusão. Ir em frente, apesar do engano. Bem... se Deus escrevia certo por linhas tortas, quem sabe essa não era mais uma das suas? O jeito era curtir. 
            Choppinho, conversa, sorrisos, insinuações. A firmeza da mão cheia de vontade, ensaiando umas investidas mais ousadas. Um beijo de leve no rosto, um outro no pescoço, um roçar dos lábios na orelha, arrepios, arrepios, arrepios... Finalmente, um beijo invasivo e atrevido como ela tanto gosta. A mão dele se apoiando no joelho dela, escorregando de leve pra caminhos perigosos... e um alarme interno soa, como uma sirene mesmo, barulhenta e assustadora, dentro do cérebro: o que é iiiiisso, menina???? Se recompõe, diz já ser tarde e pede que ele a leve direto pra casa. Fazer-se de difícil é básico pra continuidade de um primeiro contato. Inventa um compromisso no domingo de manhã, difícil de colar, mas útil. Despedidas, um gostinho de quero mais no ar, uma intenção de ficar, mas uma impossibilidade: ela tem filhos, devem chegar jájá, melhor que se vá.
             Esse charminho final anima uma vontade louca de deixarem algo marcado. Mas é mais charmoso ainda deixar a dúvida no ar. Um beijo de verdade, dois ou três dorme com Deus, e ela fecha a porta, atrás de si, ainda meio tonta. 
             No quarto, tenta imaginar por onde andaria o outro Maurício. Se o encontro tivesse sido com ele, teria sido melhor? Difícil... noite interessante aquela. Começara com um erro crasso, seguira com flores, gentilezas, atrevimentos, e a constatação de que, de fato, esse Maurício parecia ser o que aparentava. Agradabilíssimo ele... 
             O gostoso da novidade e alguns flashes dos olhares e toques e sensações a levaram no colo prum soninho adolescente, sem culpa nem dor na consciência. Há tempos não dormia assim, foi o que pensou, já despertando, a lembrança do final da noite vindo forte à mente. 
             No celular, nenhum torpedo. O café da manhã atropelado por uma vontade maluca de ligar o computador pra checar os recados. Ligar o computador antes de tomar café da manhã caracteriza sintoma de loucura. Agora se segurava, mas com muito custo... 
             Enfim, página de recados: nada. Mensagens: uma nova mensagem! :) Friozinho na barriga. Boa essa adrenalina, já tava com saudades... 


"Marina, tudo bem? Você não me conhece, mas eu sou namorada do Maurício, que saiu com você ontem à noite. Estou escrevendo pra te alertar: ele tá me enganando, mas ele tá te enganando também!!! :( "

             Um estremecimento, uma aflição, e... facebookcídio na veia!!! Argh!!! Pelo menos por uns quinze dias... Desliga o computador e resolve sair , ver gente de verdade, pegar um sol na cabeça. Durante a caminhada, aproveita pra deletar Maurício dos contatos do celular. Certifica-se de não fazer confusão. 
             Quem sabe, mais uns dois dias, já recuperada, resiliente que é, não manda um torpedo pro Maurício certo? Será que ele tem Face???



                                                                                              Analú

domingo, 1 de agosto de 2010

Poesia - Cuidado, Meninas (Alento, 2007)












Cuidado, meninas,não nasçam na Índia.
Lá meninas bonitas
não são bem-vindas.
Cuidado, meninas,
não nasçam na Índia.
Lá o colo e o peito da mãe
não são certos.
Lá pode-se morrer ainda feto.
Cuidado, meninas.
Lá vocês são o dote, a despesa, o fardo.
Seu choro sentido de fome
Será abafado com toalhas molhadas,
asfixia, morte.
Cuidado,meninas.    
Seus pais querem o Nirvana,
não há lugar pra meninas...
Fujam, fujam da Índia, meninas,
antes mesmo de nascer.
Unam-se num movimento emigratório
e deixem a Índia
à mercê da própria loucura
e esterilidade.

                                                         
Ana Lucia Sorrentino em Alento(2007) - coletânea de poesias, à venda através do e-mail analugare@yahoo.com.br