Alguns
dias atrás, acompanhando um desses noticiários que só nos dão desgosto, surpreendi-me
desgostosa além da conta. Três notícias consecutivas me deixaram tão, mas tão
aborrecida, que de lá pra cá a ideia de escrever sobre isso vem me incomodando
e, enfim, estou cedendo a ela. Porque, diante de alguns fatos que me levam a
certas conclusões, mas contra os quais não sei como agir, o que me vem à mente é
escrever. Talvez, escrevendo, eu consiga ao menos trazer à tona os absurdos que
ficam camuflados no meio de tantos outros absurdos que vivemos no dia-a-dia
como se nada fossem.
A
primeira notícia tratava de uma mulher que dera à luz dentro de um hospital
público, no corredor, em frente à porta do banheiro, depois de esperar 13 horas
pelo atendimento, em trabalho de parto. Detalhe: ela fora auxiliada pelos
outros pacientes que estavam por ali, também esperando atendimento. Duas
enfermeiras apareceram somente DEPOIS que o bebê já nascera.
A
segunda foi sobre a reivindicação de médicos que atendem por convênios de
cobrar pelo tempo que tiverem que esperar durante o trabalho de parto. Ou seja:
a gestante já paga um plano de saúde, mas, quando entrar em trabalho de parto,
como este pode durar algumas horas, não contará com o acompanhamento do médico
que acompanhou toda a sua gestação, exceto se pagar por isso à parte.
A terceira falava sobre o número
exagerado de cesarianas que ainda se faz no Brasil, mesmo sem necessidade.
Imagino que todos que estejam lendo o meu post saibam da enorme diferença que
existe entre um parto normal e uma cesariana. Para os que não sabem, grosso
modo, em um parto normal o nenê vem ao mundo passando pelos estágios que
naturalmente tem que passar para nascer, a produção de leite ocorre mais
facilmente, a mãe se recupera muito mais rapidamente, e, salvo qualquer
contratempo, logo ambos podem ir para casa, saindo da insalubridade do ambiente
hospitalar. Já uma cesariana é uma cirurgia. A mãe sofre mais, o bebê nasce de supetão, a produção do leite, às
vezes, é mais complicada, o desconforto é muito maior, a internação se
prolonga, e os riscos aumentam.
No
entanto, apesar disso tudo, os médicos preferem fazer cesarianas. Questionada
sobre isso, uma médica declarou, com todas as letras, a obviedade da situação. Na lógica
comercial dela, é muito natural que os médicos assim procedam, uma vez que
a cesariana é feita com hora marcada e leva menos tempo, o que garante o ganho
do médico sem que ele tenha que passar horas esperando por um trabalho de
parto. “Se o médico pode fazer três cesárias em um dia, e ganhar pelas três,
por que deveria ele optar por realizar partos normais, se um parto normal pode
ocupá-lo o dia todo?”
Ou
seja: o problema não é a segurança e tranquilidade da gestante, e não é a vida
do bebê. O problema é o dinheiro. O
objetivo dos médicos não é cuidar da vida humana, é ganhar dinheiro.
Coincidente e muito infelizmente, nesse final de
semana a irmã de uma amiga minha foi, em trabalho de parto, para o hospital. O
que me relataram foi que o hospital estava uma
bagunça, os médicos na correria, e, depois de um rápido atendimento, que, nas
palavras dela, a fez sentir-se como uma cadela num pet shop (do que eu discordo
um pouco, porque, talvez, uma cadela num pet shop seria muito mais bem
atendida), concluíram que ela poderia voltar para casa, porque ainda não era a
hora. Estranhamente, a medicaram com BUSCOPAN, que é um medicamento que
qualquer mulher que menstrua sabe que suprime e alivia cólicas. Ou seja: é
presumível que o médico que deveria fazer seu parto não estivesse disponível naquele
momento e tenha resolvido adiar a hora em função de sua própria
disponibilidade. Ela voltou para casa. E, quando foi novamente para o hospital
e finalmente a internaram, havia passado da hora. A criança entrou em
sofrimento e, horas depois do nascimento, morreu.
Esse
caso aconteceu mais perto de mim e eu estava consciente de toda a movimentação
em torno dessa nova vida. Uma criança que vem ao mundo não é esperada apenas
pelos seus pais. É esperada por toda a família, amigos, vizinhos... Nove meses
não são nove dias. Toda a vida do casal passa a girar em torno daquela criança.
Um acontecimento desses, de se esperar nove meses por um filho, reformatar a
própria vida para recebê-lo com todo o amor e carinho que merece, pari-lo e
perdê-lo horas depois é uma verdadeira desgraça para todos os envolvidos.
E
então? O que é que se pode fazer?
No
caos em que estamos vivendo, já tenho pouca esperança de que isso possa mudar.
Mas, para sentir que estou fazendo um mínimo, eu gostaria de mandar um recado
para os jovens que pretendem ser médicos.
Hoje
há muita informação. Vocês não devem entrar nessa carreira sem estar
minimamente conscientes de como funciona o sistema de saúde nesse país. É claro
que há certas coisas que somente no exercício da profissão vocês poderão
vivenciar. Mas há muuuitas coisas sobre as quais vocês já podem se informar.
Façam isso. Tentem perceber o que é esse mundo da saúde (que eu chamaria de mundo da doença), antes de entrar de cabeça nele. E, depois de perceberem
muito bem como é que as coisas funcionam, perguntem-se se vocês querem seguir
nessa profissão para ganhar dinheiro ou para cuidar do ser humano.
É
claro que todos precisamos de dinheiro para viver. É claro que ninguém quer
trabalhar de graça. Mas se o seu objetivo for prioritariamente grana, por favor, faça outra coisa. Abra
uma fábrica de chocolate, vá trabalhar no ramo da moda, produza qualquer coisa
que você possa vender muito. Mas não vá trabalhar com vidas humanas se você não
tem real amor por elas. Para ingressar nessa, você tem que estar consciente de
que vai enfrentar infinitos problemas e que, se não puder ganhar o que deseja, o
que é muito provável, brincar com a vida das pessoas para aumentar seus ganhos
não vale.
Médico
que faz jus à profissão que abraçou fica, sim, ao lado de uma gestante por dez
horas, se for preciso, para trazer uma criança saudável ao mundo, para ser
cuidada por uma mãe feliz e equilibrada. Mesmo que, para isso, tenha que ganhar
três vezes menos do que se fizesse partos como se estivesse em uma linha de
produção.
Dificilmente
você ganhará o que merece. Sim, um médico, assim como um professor, merece
ganhar muito. Mas, infelizmente, essa não é a nossa realidade. Então, se você
não estiver disposto a dedicar muito tempo da sua vida para diminuir o
sofrimento alheio, tendo nisso sua principal satisfação e sacrificando, na
medida em que for necessário, seu próprio conforto material, não embarque nessa
profissão.
Infelizmente,
são poucas as vezes que vejo médicos reivindicando melhorias no sistema de
saúde. Suas reivindicações, quase sempre, são de melhoria de seu próprio
salário. A classe médica me decepciona profundamente quando se adapta às
condições que o sistema lhe oferece, sem questionar se ele é minimamente
humano, correto, honesto e sem brigar pelos seus direitos de trabalhar de forma
digna e pelos direitos do paciente.
Sei
que muitos médicos que talvez estejam lendo esse meu desabafo podem se sentir
ofendidos. Sei que outros tantos terão mil argumentos para justificar sua
própria negligência. Afinal, depois que se mergulha num sistema deteriorado, o
normal é deteriorar-se com ele, não é? Eu não quero generalizar. Sei que há as moscas brancas, como alguns médicos que
conheço e para os quais tiro o chapéu. Mas, infelizmente, eles não são maioria
e digo isso sem medo de errar.
E é
exatamente por isso que eu quero dar esse alerta. Se você pretende vir a ser um
médico, esteja certo de que é forte o suficiente para não se deteriorar junto com
o sistema. Esteja certo de que terá forças para, se necessário, promover
mudanças, reivindicar direitos, exigir condições dignas de trabalho, e até
encabeçar movimentos, na busca de uma melhoria do sistema de saúde. Quem está
ingressando, hoje, na medicina, tem que ter, além de vocação e talento, postura
política. Porque se você simplesmente se sujeitar ao que está aí, você corre
sério risco de sucumbir e transformar-se num desses comerciantes da saúde que
hoje fazem cesárias em mulheres que poderiam ter partos normais, para ganhar
mais. E, para mim, quem faz isso é bem capaz de estar, amanhã, traficando
órgãos, porque, afinal, isso pode ser ainda mais lucrativo.
Ana Lucia Sorrentino