Recentemente
Paulo Jonas de Lima Piva (1), um muitíssimo querido professor de
filosofia da Universidade São Judas Tadeu, esteve no Super Pop, programa da
Luciana Gimenez na Rede TV, representando a ATEA - Associação Brasileira de
Ateus e Agnósticos, numa conversa miscelânica que tentava associar
acontecimentos recentes, como a queda de um meteoro na Rússia e a renúncia do
Papa, ao fim do mundo (2).
Faço
questão de frisar logo de início o quanto esse professor é querido para já no
primeiro parágrafo deste texto dar uma martelada nietzscheana certeira nesse
monstro pré-histórico que é o preconceito contra ateus. Ateus podem, sim, ser
muito queridos e não há absolutamente NENHUMA justificativa para que se pense o
contrário.
Apesar
do comportamento um tanto quanto estapafúrdio da apresentadora, a iniciativa
foi louvável e Piva conseguiu usar de forma competente o pouco espaço que teve,
deixando de lado a proposta sensacionalista inicial para esclarecer os
equívocos que sempre rondam o ateísmo e a figura do ateu, provando que é
possível aproveitar muito bem as “brechas da mídia conservadora” (nas palavras
dele) em favor do esclarecimento.
Durante
cerca de uma hora um representante da igreja católica, um ufólogo, um sheik, um
“especialista e pesquisador de ordens iniciáticas” - seja lá o que isso for -,
um astrônomo e um ateu puderam estar num mesmo espaço mostrando seus diferentes
pontos de vista, numa verdadeira lição de tolerância e respeito. Eventos como
esse fazem o mundo caminhar para frente.
Em
fevereiro deste ano, quando aconteceu o Primeiro Encontro Nacional de Ateus e
Agnósticos, em que Piva foi um dos palestrantes, o abordei para confessar meu
estranhamento ao ver ateus organizando encontros e militando em favor do
ateísmo, pois sempre me parecera que por sua característica autonomia intelectual
eles prescindiam desse tipo de manifestação coletiva, tão própria das
religiões. E ele me fez ver que nada há de estranho no fato de pessoas que
compartilham das mesmas ideias desejarem estar juntas, debater, se
confraternizar. Percebi, então, que o ateu tem a mesma necessidade de
pertencimento que qualquer um de nós tem, em maior ou menor grau, e que,
talvez, para ele, seja ainda mais importante encontrar a sua turma, uma vez que ela é uma minoria e, pior, uma minoria
estigmatizada.
Basta
um pouco de reflexão para que percebamos o que pode motivar um ateu a se
manifestar publicamente em favor do ateísmo. Se pensarmos nas tantas barbáries
cometidas pelos homens em nome de Deus, nos estragos que em pleno século XXI
ainda fazem as hediondas guerras santas
consequentes do fundamentalismo religioso, na manipulação e na exploração
desmedidas que algumas religiões fazem de seus fiéis; se pensarmos no tanto de
preconceito que se planta dentro das igrejas, em pregações que equivocadamente
consideram a prática homossexual uma opção
ou uma doença, que colocam a
mulher em posição de submissão e que julgam e condenam sumariamente quem fez um
aborto, já teremos justificativas suficientes para colocar em dúvida as tão
propaladas virtudes da religião. Além disso, religiões trabalham com a fórmula
“medo + culpa”, que quase sempre resulta em obediência cega, e promovem a não
aceitação do que somos de fato, o que faz muita gente sofrer.
Há aí
muito mais do que “pequenos” motivos para que o ateu, sentindo-se liberto,
deseje, num impulso altruísta, libertar quem ainda esteja preso aos grilhões da
fé religiosa. Mesmo porque num mundo em que só alguns são livres, a liberdade
não se realiza de fato.
Também não é nada difícil compreender o desejo
do ateu de vir a público não apenas para defender o ateísmo, mas para defender
a si mesmo. As poucas vezes em que me perguntaram qual era a minha religião e
eu respondi que eu era agnóstica, a perturbação criada pela minha resposta
quase se solidificou no ar. As pessoas ficam constrangidas, sem saber o que
dizer, e às vezes quase soltam um “sinto muito”. Imagino a confusão interna que lhes acomete
quando cruzam a ideia preconceituosa que têm do ateu com o que sou. Devem se
perguntar: como é que pode, a Analú, essa pessoa do bem, agnóstica???
Respondendo
a um questionamento sobre religiosidade em uma de suas palestras, o
respeitadíssimo médico e escritor Drauzio Varella relatou exatamente isso. Que
muita gente que o admira não consegue compreender “como pode um homem tão bom
não acreditar em Deus”. Que ser ateu parece invalidar, para essas pessoas,
todas as boas ações que ele de fato fez. Que o olham como se ele fosse imoral,
como se não respeitasse a vida. (3) É essa confusão que o senso comum faz que
precisa ser definitivamente debelada.
A aparição de um filósofo ateu em um programa
de TV e sua defesa da tolerância e do respeito ao pensamento alheio são
exemplos que os ativistas ateus deveriam se empenhar em seguir. Porque nesse
momento em que ateus estão conseguindo se organizar e expor publicamente seus
argumentos, talvez mais importante do que metralhar a religião seja a desestigmatização da figura do ateu. Só
ateus que conseguirem respeitar e se fazer respeitar, penso eu, conseguirão
desestruturar a argumentação religiosa sedimentada. Um discurso agressivo,
ainda que fundamentado na razão, acaba, quase sempre, sendo um tiro no pé. O
religioso tem uma resistência imensa a ouvir tudo o que destoa das pregações
religiosas a que está habituado. E se a argumentação do ateu vier carregada de
agressividade e ironia ou insinuar que o religioso é menos inteligente por
acreditar em Deus, já haverá aí motivo suficiente para que todas as atenções se
voltem contra o comportamento agressivo do ateu e sua argumentação racional
seja totalmente ignorada.
Leandro
Karnal, Doutor em História
Social pela USP, costuma dizer em suas palestras que “a
religião tem se comportado historicamente como chantilly: quanto mais se bate,
mais cresce.” Diz Karnal que ao longo de toda a história das religiões, sempre
que uma religião foi combatida ganhou mais força. (4) Isso é um dado histórico, não é especulação.
E é o que me faz crer que, nesse momento, talvez mais efetivo do que bater esse chantilly seja deixá-lo
azedar. Ateus e filósofos podem mostrar
ao mundo que há estilos de vida mais saborosos e menos sofridos fora da
religião, e que estes estilos não desconsideram a moral ou a ética. E podem,
com argumentação racional, fazer com que as pessoas percebam que a moral
independe da religião e que adultos devem ser capazes de deliberar sobre todas
as questões com as quais se defrontam baseando-se em sua própria razão. O senso
comum precisa desconstruir essa ideia preconceituosa de que o religioso é
necessariamente um homem bom e o ateu necessariamente um homem mau. O mundo
está cheio de religiosos de caráter duvidoso e de ateus virtuosos. Quem, em sã
consciência, colocaria em dúvida as virtudes do sociólogo ateu Herbert de
Souza, o já falecido “Betinho”, ativista dos direitos humanos e combatente da miséria?
Em
outubro de 2012 me envolvi com a questão da demarcação das terras dos índios
Guaraní-Kaiowás e resolvi me juntar aos movimentos que já aconteciam pelo
Facebook. Pedi ajuda a alguns conhecidos e de pronto a recebi. Um amigo me
ajudou a fazer a página do evento, outros me ajudaram a divulgá-la; um outro se
propôs a fazer uma arte para a confecção de folhetos, e um último a imprimi-los
em sua gráfica, gratuitamente. Eram todos ateus. Tenho visto muito isso.
Enquanto religiosos vão a cultos louvar a Deus, ateus têm se preocupado e se
envolvido em campanhas contra o desmatamento, contra a homofobia, contra o
racismo, contra maus tratos aos animais, contra abusos de todas as espécies.
Enfim: campanhas em prol de um mundo menos cruel. Por que esses ateus não podem
ser considerados homens virtuosos?
Todas as vezes em que vejo um religioso
perguntando a um ateu como ele estabelece seus próprios limites sem ter uma
religião que o norteie, fico profundamente desconfiada. Acredito ser muito mais fácil confiar em
alguém que não precise de um Deus ou de uma religião para lhe impor limites ou
regras do que em alguém que só se mantenha dentro do moralmente aceitável por
temer as represálias de Deus. Acredito mais nos homens que autenticamente
assumem suas fraquezas do que naqueles que se travestem de bonzinhos para caber
no modelito cristão que dificilmente veste bem em homens de carne e osso. Como
a gorducha linda a quem todos admiram, mas que vive frustrada por não caber nas
minúsculas roupas que a ditadura da moda impõe, o cristão, por mais bem
intencionado que seja, está sempre aquém de suas próprias expectativas, porque
elas se baseiam numa perfeição rigorosa demais para o padrão humano. Homens são
fracos, falíveis, e estão sempre tentando sobreviver num mundo difícil demais.
Exista
ou não um Deus, estejamos ou não próximos desse tão pouco provável fim do
mundo, pertençamos ou não a uma religião, o que todos nós precisamos é de
compreensão e tolerância. A convivência pacífica é sinal de inteligência. Assim
como é saudável que religiosos comecem a se abrir para os argumentos ateístas,
acredito que também seja salutar aos ateus perceberem que alguns dos mais
brilhantes pensadores da história da filosofia, embora se opusessem à religião
- o que acredito ser a causa mais interessante -, tinham uma concepção própria
de Deus, não o descartando por completo. Quem já leu Sêneca (5) ou
Spinoza (6) sabe que é possível pensar em Deus sem imaginá-lo de barba
branca e cajado na mão se ocupando das nossas mazelas particulares, falando em
códigos de difícil compreensão através de textos inspirados e nos incutindo culpa. Se é ingenuidade acreditar na
existência de Deus, também é ingenuidade a pretensão da verdade. E o respeito
ao pensamento alheio deve estar acima das discordâncias. Vale lembrar uma frase
de Voltaire (7) que cabe perfeitamente aqui: “Discordo daquilo que dizes, mas
defenderei até a morte o teu direito de o dizeres”.
Um
doutor em filosofia pela USP, com passagem pela Sorbonne, ateu, se propor a ir
a um programa popular para falar sobre assunto tão controverso é uma
demonstração de falta de preconceito e de coragem. É preciso ter coragem para
romper com padrões preestabelecidos e para se expor publicamente e é preciso
não ter preconceito para combater o elitismo que vive assombrando o mundo da
filosofia.
Se a
filosofia acadêmica se faz de história, de erudição, de citações, de notas de
rodapé, a filosofia para a vida conjuga tudo isso com a atitude. Quando
escrevemos sobre algo provocamos reflexões que podem ser, para alguns,
extremamente profícuas. Mas quando vivemos
aquilo em que acreditamos contaminamos todo o nosso entorno. O pensamento filosófico precisa se infiltrar
por todas as brechas possíveis para combater o preconceito, uma verdadeira
ferrugem que corrói a sociedade. E isso não se faz apenas com o discurso, mas
com a atitude. Parabéns, Piva.
Ana
Lucia Sorrentino
1 - PIVA, Paulo J. L. - Pós-doutor em filosofia pela
FAPESP, autor dos livros Ateísmo e Revolta: os manuscritos do padre Jean
Meslier e O Ateu Virtuoso: materialismo e moral em Diderot,
além de ter participação em algumas outras obras. É também um dos organizadores
do livro Dez provas da inexistência de Deus e autor do blog "O
Pensador da Aldeia".
2
– Fonte:< http://www.youtube.com/watch?v=hB2BX7nCDtA>
- acesso em 30/03.2013
3 – Fonte: < http://www.youtube.com/watch?v=gnSzuRAkqQ0>
- acesso em 30/03/2013
4 – Fonte: < http://www.youtube.com/watch?v=KsGYDTIWhF8>
- acesso em 30/03/2013
5 – SÊNECA, Lucius Annaeus – (Córdoba, 4 a.C. –
Roma, 65) foi um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do
Império Romano. Pensador estoico, sua obra literária e filosófica inspirou o
desenvolvimento da tragédia na dramaturgia.
6 – SPINOZA, Baruch – (24/11/1632, Amsterdã –
21/02/1677, Haia) foi um dos grandes racionalistas do séc. XVII, dentro da
chamada Filosofia Moderna. É considerado o fundador do criticismo bíblico
moderno.
7
– VOLTAIRE – François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (Paris,
21/11/1694 – 30/05/1778) foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo
iluminista francês.